domingo, 16 de novembro de 2008

Uma bonita história


Circular da linha 82 oferece biblioteca itinerante à população


Certo dia, sentada na sua cadeira com vista para a janela, uma passageira intrigou-se com a cena a que assistira. Viu que um homem folheava um livro.
Conseguiu ver o autor. Era Jorge Amado.
Entre um sossego e outro, enquanto não chegava passageiro, ele passava uma página. A mulher se encasquetou. Antes de descer, foi até o moço e perguntou: “Você gosta de ler, cobrador?” Ele devolveu, envergonhado: “Gosto, sim, senhora!”
Uma semana depois, embarcou novamente naquele ônibus. E trouxe três livros para o cobrador. Eram obras de literatura brasileira. De tanta emoção, o moço engasgou. Levou para casa seu mais novo acervo.
Devorou-os. Enquanto lia suas histórias, pensou: “Por que não compartilhar isso com outras pessoas?”
E ele teve uma grande idéia: levaria os livros para o ônibus e assim incentivaria outras pessoas a ler também.
Juntou as 10 obras que tinha em casa, colocou numa sacola e partiu para o ônibus onde trabalhava, um circular em Sobradinho II.
Ali, a idéia se espalhou. Numa caixa de papelão perto da roleta, ele colocou os livros. E um cartaz: Projeto Cultura no Ônibus. Ninguém entendeu nada.
“É pra pagar?”, perguntavam alguns.
Não era pra pagar. Era pra ler, pegar emprestado, com o compromisso de devolver, e pegar mais. Tantas vezes quisesse. Incansavelmente, ele explicou sua idéia para os passageiros da sua linha.
E pedia doação. Quem tivesse algum livro em casa, e não mais quisesse, ele aceitaria.A novidade se espalhou. Em poucos meses, havia centenas. De todos os tipos, gêneros, gostos. Até gibis. E o povo começou a ler, levar para casa, trocar. Falar de poesia, comentar sobre histórias. Nem a confusão do ônibus lotado tirou a vontade de ler dos passageiros.
A linha de Antônio tornou-se a mais disputada do pedaço. Há sete meses, porém, o cobrador foi transferido para a linha 82, que parte do Núcleo Bandeirante com destino ao Setor de Abastecimento e Armazenagem Norte (Saan).
Ali, recontou sua história. E mais livros chegaram. A casa modesta onde mora de aluguel com a mulher, filho e uma enteada não coube mais tanta coisa. Ele teve que alugar um barraco para guardar o acervo que não parava de chegar. Todo mês, desembolsa R$ 120, do salário de R$ 569, para pagar o aluguel do lugar onde está seu tesouro.
Hoje são mais de 4 mil livros. Na nova linha, o cobrador Antônio da Conceição Ferreira, maranhense de 36 anos e há 13 morando no DF, teve mais uma boa idéia. Deixaria as obras mais visíveis, para que o passageiro pudesse vê-las melhor.
Não perdeu tempo. Foi a uma banca de jornal da Rodoviária do Plano Piloto e pediu a uma funcionária que lhe desse um porta-jornais de plástico.
No dia seguinte, levou o porta-jornais para sua biblioteca ambulante.
E o pendurou depois da roleta, logo atrás do validador de cartões eletrônicos. E o anúncio, numa folha A4, impressa em computador, o nome do seu projeto. O povo que ainda não conhecia a intenção do cobrador se indagava: “O que seria aquilo?”
E ele explicava tudo mais uma vez. Aos poucos, as pessoas foram entendendo.
E descobriram que não precisariam pagar nada para ler livros, trocados todo dia. A disputa foi grande. As viagens nunca foram tão concorridas.
A linha 82 virou atração. Há quem a espere com ansiedade.Quem pega o livro assina uma ficha, que vira o cadastro. Lá, consta o nome do leitor e o telefone. Nada mais. Prazo de devolução? “Varia de acordo com a capacidade de leitura de cada um”, ele explica.
Em um ano, não mais que 10 livros deixaram de ser devolvidos. “Jamais vou deixar de levar meu projeto pra frente porque um ou outro não devolveu. Os honestos não podem pagar pelos não honestos”, reflete o cobrador — filho de um lavrador e uma catadora de coco babuçu.
Antônio deixou os confins do Maranhão atrás de um sonho: estudar e “ser alguém na vida”.
Aqui, entretanto, por causa das dificuldades financeiras, ele ainda não conseguiu terminar o ensino médio. Precisou trabalhar para sobreviver. Foi auxiliar de serviços gerais, balconista, vendedor e, há 8 anos, virou cobrador. Levou o desejo de estudar para dentro do ônibus. Realiza-se quando observa um passageiro extasiado com seus livros.
“Quem lê tem uma visão mais crítica das coisas, do mundo e da vida. Aí, se liberta”, ele filosofa.
Assistindo a tanta catarse, a tantos renascimentos, Antônio admite, com os olhos marejados: “Esse é o meu sonho. Ver todo mundo lendo, pensando melhor. Queria poder colocar livros em todos os ônibus do DF”.
E planeja, convicto: “Ano que vem, vou voltar aos meus estudos. Em 2010, se Deus quiser, pretendo entrar na faculdade de biblioteconomia, da UnB”.
Tem gente que passa pela vida. Há outros que edificam, transformam, realizam sonhos e são capazes de renascer. O cobrador que encheu um ônibus de livros e tem ajudado a mudar a vida das pessoas faz parte da segunda categoria.
Quem puder doar livros e ajudar Antônio no projeto cultural pode ligar para 9195-502.

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